O FRONTEIRA - Festival Internacional do Filme Documentário e Experimental, desde sua primeira edição, dedica-se à exibição de filmes que resistem a formas predominantes da linguagem cinematográfica, questionadores de visões pré-fabricadas de mundo e que oferecem novas formas de ver, pensar e perceber a realidade. Com foco nos cinemas menores, isto é, nas tradições minoritárias do cinema a partir do documentário e do filme experimental, o Fronteira é um evento dedicado a proporcionar uma programação internacional diversificada no Brasil. O festival já apresentou mais de 500 filmes, abrangendo curtas, médias e longas-metragens, provenientes de talentosos realizadores e realizadoras de todas as partes do mundo. Com aproximadamente 50 países representados, o Fronteira oferece ao público uma rica seleção de obras cinematográficas, a maioria das quais nunca antes exibidas no Brasil.
Depois de quatro edições em Goiás, o Fronteira será realizado em 2023 na capital do país. O evento acontecerá no Cine Brasília entre 29 de agosto e 3 de setembro. A programação conta a Mostra Cineastas na Fronteira, que define-se como uma mostra principal porque contemporânea e internacional com obras finalizadas a partir de 2022. Ocorre também a Mostra Cadmo e o Dragão, voltada, esse ano, somente para filmes contemporâneos do DF e marcando a re-fundação do Fronteira - Festival Internacional do Filme Documentário e Experimental no planalto central do Brasil.
O FRONTEIRA é realizado pela Júpiter Filmes e pela Barroca Filmes com direção de Camilla Margarida, Henrique Borela, Juliane Peixoto, Marcela Borela e Rafael C. Parrode.
A FRONTEIRA
A Fronteira, esse lugar em que estamos, foi dito e narrado por muitos. A Fronteira não é uma abstração conceitual, mas um lugar multi-habitado por agentes de estética, de política, de produção de vida e de saúde. A fronteira é um modo de compreender a ocupação do território brasileiro, assim como uma forma de mediação com o processo histórico americano. As ideias partem do trabalho do sociólogo José de Souza Martins em sua obra FRONTEIRA: a degradação do outro nos confins do humano. Um aspecto do conceito de fronteira mostra que nas histórias dos Estados-nação americanos há um movimento de expansão demográfica sobre territórios não ocupados ou insuficientemente ocupados pelo capital. (MARTINS, 2009, p. 133).
Seriam esses, portanto, considerados lugares de fronteira: a exemplo, regiões como o oeste brasileiro e a Amazônia, onde, em certos momentos da história, diferentes temporalidades e ideias se encontraram e conflitaram? Sim. Martins (2009, p. 137) explica que “[...] a fronteira de modo algum se reduz e se resume à fronteira geográfica. Ela é fronteira de muitas diferentes coisas: fronteira da civilização (demarcada pela barbárie que nela se oculta), fronteira espacial, fronteira de culturas e visões de mundo, fronteira de etnias, fronteira da história e da historicidade do homem. É sobretudo, a fronteira do humano”. O autor faz uma historiografia da fronteira, no âmbito das humanidades, e ressalta sua “contraditória diversidade”, marcada por tempos históricos diversos e, ao mesmo tempo, contemporâneos. O conceito designa “frente de expansão da sociedade nacional sobre territórios não incorporados”, de modo a apresentar visão da história brasileira, marcada pelo avanço das práticas capitalistas e de seus processos de aceleração do capital por meio da ocupação e expropriação da terra, esta, aparentemente inabitada aos olhos da sociedade nacional, mas na verdade, lugar de muitas etnias indígenas que foram sendo sistematicamente expulsas de seus territórios. É por isso, que, para este autor, as sociedades americanas ainda estão em estágio de fronteira – estágio de sua história em que as relações sociais e políticas estão, de certo modo, marcadas pelo movimento de expansão demográfica sobre terras não ocupadas ou insuficientemente ocupadas pelo capital (MARTINS, 2009, p. 132-133).
Tais ideias, nessa chave, mostram que Goiânia e Brasília são consideradas "Cidades Novas de Fronteira", conceito de Luiz Sérgio Duarte da Silva na sua obra "Brasília: modernidade e periferia". Refere-se a este tipo de cidade construída no "meio do nada" como obra do estado nacional para ocupar o território e modernizar o país. Ambas são "cidades planejadas" mas com inventores diferentes em momentos diferentes. Goiânia é filha da Revolução de 1930, imaginada e construída por Vargas. Ela mesma sinal da derrota das oligarquias rurais da antiga capital Goiás Velho, em virtude da subida da burguesia liberal local. Já Brasília é ao mesmo tempo que o aprofundamento da fronteira agrícola ao norte, o maior acontecimento civilizatório do oeste, com toda sua densidade colonizadora.
A RE-FUNDAÇÃO
O trabalho da artista Ana Flávia Marú, a partir da sua pesquisa com as formigas saúvas, é a identidade dessa re-fundação. Ana Flávia Marú nasceu em Itumbiara (1992), atualmente vive em Goiânia. Desenvolve trabalhos em diversas técnicas como pintura, desenho, audiovisual, além da apropriação de arquivos e objetos existentes. Tem uma escuta e um fazer com os objetos e seres que criam brechas na narrativa hegemônica da cidade contemporânea. Marú integra o grupo de pesquisa e prática História Natural de Goyaz (Goiânia, 2019). Produzida unicamente para o festival, a arte foi criada “com o desejo de imaginar a Re-fundação, o caminho para uma história com as formigas: a simulação de uma perspectiva isométrica da edificação do Cine Brasília, projetado por Oscar Niemeyer e tomado pelas formigas", explica Ana Flávia Marú.
Sob a marchinha de carnaval:
“Ou o Brasil acaba com a saúva
ou a saúva acaba com o Brasil
Tem saúva no quintal
Tem saúva na lavoura
Mas onde tem mais saúva
é no Distrito Federal.”
"No coração de Goyaz, as formigas já estavam, antes do projeto, antes de Brasília, antes de Goiânia, estavam lá, junto com as emas, com os ratos candangos, com os seres humanos e outros humanos que habitavam, sonhavam, dançavam, cantavam sob a terra esfolada pelo hálito do monstro. A imagem que construí se formou com a luz solar, sobre o químico ainda com tom esverdeado. Depois de seis minutos sob o sol goiano lavei o papel e o azul apareceu, dando contorno e nitidez pras formigas. O azul que dá contorno às formigas é a cianotipia, azul conhecido como azul da prússia foi utilizado desde a 'Grande onda de Kanagawa, de Hokusai, mas também os uniformes da infantaria do Exército prussiano, como se houvesse algo na estrutura química da cor que invocava a violência, uma sombra, uma mácula essencial herdada dos experimentos alquimistas, que despedaçou animais vivos e juntou suas partes em quimeras horríveis (...)” Ana Flávia Marú e trecho do livro, Quando deixamos de entender o mundo, de Benjamin Labatut.
Técnica: Desenho digital e cianotipia s/ papel.
Arte: Ana Flávia Marú @anaflaviamaru