Publicado em 01/08/2023
"o cinema só existe como uma fronteira instável"
Jacques Rancière
Como o mundo e os modos de vida são fabulados junto ao cinema? "Um filme é um filme" (Grunewald) mas que mundos ele habita e cria? O cinema não é mera representação da realidade nem mero artefato do entretenimento, muito menos apenas uma combinação de elementos de uma linguagem rígidamente constituída para a funcionalidade de um tipo de narrativa do ocidente. A partir do cinema são convocadas experiências singulares entre tudo que vive e pode se tornar imagem ou fonograma.
De forma complementar e oposta entre si, ressurgente por natureza e constantemente reinventada pelas coletividades, os filmes das mostras Cineastas na Fronteira, Cadmo e o Dragão, assim como o filme de encerramento da 5a edição do Fronteira - Festival Internacional do Filme Documentário e Experimental, que acontece no Cine Brasília, de 29 de agosto a 3 de setembro de 2023, são ações fabulatórias na fronteira. Em obras que são atos de fala que não se separam das performances dos corpos que encarnam (leda maria martins) e que não se separam das escritas da história de seus territórios - a carne da terra, temos o que "o cinema mostra" (Godard). A ideia é o contato com os filmes como num transe, num ritual, para que possamos re-elaborar a fábula na fabulação junto às "encruzilhadas que reinventam caminhos, acessam rasuras e re-territorializam momentos extraordinários" (leda maria martins).
A errância é um lugar (Rancière) e ela nos situa entre o documentário e o experimental, essas tradições minoritárias do cinema. Se a fabulação escapa a noção de mimese, não concorda com a ficção dominante (Rancière). Isso é um jeito de dizer porque este é um festival de cinema documentário e de cinema experimental. Quando retiramos a ficção hegemônica do horizonte, o que podemos ver, sentir, perceber, pensar? A subordinação do real ao possível, a instituição de uma etnografia falsificante na prática documental, a ficção como ética, as políticas da terra, as políticas da diferença, as forças de pertencimento (e não pertencimento), errâncias, atos de resistência, ativismos contemporâneos, arquivos, paixões, reconstituições subjetivas e subjetivações radicais. Os gestos de filmar o mundo na sua aspereza e fascínio tornam quase indiscerníveis o plano material do gesto criador.
Os campos do documentário e do filme experimental são confluentes (Nego Bispo), e confluindo com a terra e os viventes nela são contra-hegemônicos e tomados das potências do falso (Deleuze). Fabulam livremente, fazem a dobra sobre si próprios, efetivamente, como lugares de fronteira, fronteiras da linguagem que convocam fronteiras humanas e não-humanas. Por isso, não nos comprometemos com um discurso sobre o real e dizemos, "há vida além da percepção" (Brakhage).
Estamos na fronteira e convidamos a todes a conhecerem nossa seleção de filmes. Se a Fronteira é a plataforma de pesquisa e difusão de cinemas minoritários que criamos em 2014, também passou a reunir mais pessoas e hipóteses. A Fronteira é um lugar que tem muitos tempos.
Compõem a seleção filmes, realizadores já conhecidos do Fronteira que terão sua estreia no Brasil, como Bani Koshnoudi, Jodie Mack, Parastoo Anoushahpour, Rebecca Baron e Douglas Goodwin, Sylvia Schdelbauer, Helena Girón e Samuel Delgado, Jacques Perconte, Ana Vaz, Ben Rivers e Céline Conderelli, Alexandra Cuesta, Mike Hoolboom e Saif Alsaegh. Teremos ainda a honra de exibir os novos filmes de Cláudio Caldini, Takashi Makino, Moyra Davey, Gaelle Rouard, Pablo Mazzollo, Giuseppe Spina e Giulia Mazzone, Nilles Atallah, Fergus Daly e Katherine Waugh, o filme coletivo de Sophia Bohdanowicz, Burak Çevik e Blake Williams, além do novo grandioso filme do mestre Júlio Bressane com Rodrigo Lima. Somam-se a eles filmes destacados de jovens realizadores como Nour Ouyada, Halik Azeez, Genesis Valenzuela, Medhi Jahan, Niina Suominen, Sanaz Sorabi, Marina Herrera, Theo Montoya, e também Noé Rodriguez que estreia mundialmente seu novo filme Frog Moon.
Entre os filmes brasileiros, exibiremos em estreia mundial os novos filmes de Júlia de Simone e Ricardo Pretti (Rapacidade), de Leonardo Amaral, Ralph Antunes e Pedro Maia de Britto (Tudo o que vi era o sol) além dos mais recentes trabalhos de João Pedro Bim, Tetsuya Maruyama, Cláudia Cárdenas e Juce Filho, Morzaniel Iramari, Florença Neves e Lucas Tavares, Breno Baptista, Daniel Neves e Renato Queirós, Bernardo Oliveira e Saskia, Rodrigo Ribeiro-Andrade e Vinícius Gonçalves e Leonardo Hecht - representantes da Brasília na mostra principal. Dos trabalhos vindos do Distrito Federal, teremos a estreia mundial do novo trabalho de Silvino Mendonça (Paisagem em Chamas), além de filmes dirigidos por Camilla Shinoda e Tiago de Aragão, Amanda Devulsky e Maurício Chades.
A seleção destes filmes cria uma constelação de experiências múltiplas que, a partir dos ajuntamentos entre os diversos programas, se desdobram num caleidoscópio dissidente que propõe outras formas de ler e vivenciar o mundo e o cinema.
É preciso compreender e por vezes questionar tecnologias e modos de produção, exibição, acesso ao cinema. E vale pensar criticamente a inegável presença dos streamings. Como construir espaços de exibição que privilegiem territórios e modos de criação e fruição não-hegemônicos? Desse modo, por que um filme vem a aliar-se a um festival? E se retirarmos o mercado do horizonte desses eventos, o que sobra para um festival de cinema que ainda possa produzir valor simbólico e conhecimento a partir de filmes? Pensamos isso na fronteira onde as redes são as relações, e cada relação uma aventura. As comunidades que formulam os filmes tramam vida com eles e as insurgências são o que mantém as costuras dessa rede, uma resistência e uma fabulação de como estar no mundo, algo sempre prestes a se romper. As imagens e sons que participam dessa insurgência abrem os desvios e habitam a fronteira. A fronteira é instável, como é o cinema.
Como sugeriu Jacques Rancière (2019), há um trabalho das imagens a ser feito: "(...) a visão sobre esse trabalho se opõe claramente ao ponto de vista dominante da imagem como realidade passiva, destinada ao consumo de seres passivos. As imagens não são passivas. Elas trabalham para transformar a visibilidade dos seres e das coisas: o modo como são visíveis, mas também as próprias formas da visibilidade". O gesto intervém sobre "o saber fazer" e o contrasta com o "porque fazer" imagens. Nesse sentido, ainda pontua Rancière, melhor explicado por sua comentadora Andrea Soto Calderón (2019): "a questão central deixa de ser 'como produzir imagens', e passa a ser 'o que fazem as imagens', 'quais operações elas constroem'.
É fato que o acesso à produção de cinema e audiovisual (a própria possibilidade de fazer filmes e lançá-los ao mundo) é bastante assimétrico em termos de classe, gênero, raça e território. Entende-se, portanto, que é primordial que existam novos programadores, pesquisadores, professores, produtores, distribuidores, realizadores, estudantes de cinema desenvolvendo uma percepção em prol dos cinemas insurgentes, soterrados e/ou excluídos historicamente. Pensamos a curadoria e seus desdobramentos éticos como no conceito de Castiel Vitorino (2021) e Aline Vila Real (2018), tal como "cura", que tem relação com uma ideia de reparação.
Ocorre que os espaços de exibição, janelas e mídias foram ocupados historicamente de maneira hegemônica pela indústria cinematográfica norte-americana/européia de maioria masculina, branca e cisgênero. A produção, um tanto mais vasta e inegavelmente mais numerosa que seus espaços de fruição, também padece das mesmas hegemonias. Como intervir na organização de um sistema de visibilidade excludente como o do cinema e do audiovisual?
Estamos a refundar o Fronteira - Festival Internacional do Filme Documentário e Experimental no planalto central do Brasil. Sejam todes bem vindes.
Cura-doria V Fronteira - Festival Internacional do Filme Documentário e Experimental
Ana Flávia Marú, Camilla Margarida, Henrique Borela, Juliane Peixoto, Marcela Borela e Rafael Castanheira Parrode.
SELEÇÃO OFICIAL - V FFF
CINEASTAS NA FRONTEIRA
Eu vejo a escuridão / I see a darkness / Katherine Waugh e Fergus Daly / Irlanda / 2023 / 134’(estreia internacional) - filme de abertura
Anti-cosmos / idem / Takashi Makino / Japão / 2022 / 16’ (estreia no Brasil)
Antfilm / idem / Tetsuya Maruyama / Brasil / 2022 / 2’
Aqui onde tudo acaba / Here where everything ends / Cláudia Cárdenas e Juce Filho / Brasil / 2023 / 19’
Bezuna / idem / Saif Alsaegh / EUA / 2023 / 7’ (estreia no Brasil)
Bloom / idem / Helena Girón, Samuel M. Delgado / Espanha / 2023 / 18’ (estreia no Brasil)
Cabeça de Ouro / Golden Headacher / Niina Suominen / Finlândia / 2022 / 17’ (estreia no Brasil)
Caixa Preta / Black Box / Saskia e Bernardo Oliveira / Brasil / 2022 / 50’ (estreia no DF)
Canto Errante / Wandering Song / Genesis Valenzuela / Espanha, República Dominicana / 2022 / 6’ (estreia no Brasil)
Cenas de Extração / Scenes of Extraction / Sanaz Sorabi / Canadá, Irã / 2023 / 43’ (estreia no Brasil)
Chile 1973 / idem / Mike Hoolboom / Canadá / 2022 / 8’ (estreia no Brasil)
Depois do Trabalho / After Work / Ben Rivers e Céline Condorelli / Reino Unido / 2022 / 13’ (estreia no Brasil)
Desert Dreaming / idem / Abdul Halik Azeez / Sri Lanka / 2022 / 11’ (estreia no Brasil)
El Chinero, un cerro fantasma / El Chinero, a phantom hill / Bani Khoshnoudii / França, México / 2023 / 11’(estreia no Brasil)
Escuridão Flamejante / Darkness, Darkness Burning Bright / Gaelle Rouard / França / 2022 / 73’ (estreia no Brasil)
Heroínas / idem / Marina Herrera / Peru / 2022 / 21’
Imagem-tempo / Image-Time / Daniel Neves, Renato Queiroz / Brasil / 2022 / 5’
O jardim secreto / The secret garden / Nour Ouayda / Líbano / 2023 / 27’ (estreia no Brasil)
A longa viagem do ônibus amarelo / The long voyage of the yellow bus / Julio Bressane e Rodrigo Lima / Brasil / 2023 / 432’
Lua Sapo / Frog Moon / Noé Rodrigues / Espanha, Canadá / 2023 / 14' (estreia mundial)
Lubrina / Fog / Leonardo Hecht, Vinícius Fernandes / Brasil / 2023 / 17’ (estreia no Brasil)
Lungta / idem / Alexandra Cuesta / México, Equador / 2022 / 10’ (estreia no Brasil)
Luz Subterránea / Subterranean Light / Niles Atallah / Chile / 2022 / 14’ (estreia no Brasil)
Mãri Hi - A árvore do sonho / Mãri Hi - The tree of dream / Morzaniel Iramari / Brasil / 2023 / 17’
Monumento à Desmemorialização / Monument to Dememorialization / Florença Francisco Fabiano Neves, Lucas Tavares / Brasil / 2022 / 5’
M*U*S*H* / idem / Jodie Mack / EUA / 2022 / 8’ (estreia no Brasil)
The Newest Olds / idem / Pablo Mazzolo / Argentina, Canadá / 2022 / 15’ (estreia no Brasil)
No Começo, a Mulher Era o Sol / In the Beginning, Woman Was the Sun / Sylvia Schedelbauer / Alemanha / 2022 / 17’ (estreia no Brasil)
Ópera Cavalo / Horse Opera / Moyra Davey / EUA / 2023 / 60’ (estreia no Brasil)
Panteras / Angels / Breno Baptista / Brasil / 2022 / 38’ (estreia no DF)
Para onde vão os velhos deuses que o mundo ignora? / Where do the old ignored gods go? / Giuseppe Spina, Giulia Mazzone / Itália / 2022 / 67’ (estreia no Brasil)
A portas fechadas / Behind Closed Doors / João Pedro Bim / Brasil / 2023 / 66’
Promesa / idem / Cláudio Caldini / Argentina / 2022 / 3’ (estreia no Brasil)
O que teria havido se não houvesse nada? / What would have been there had there been nothing? / Mehdi Jahan / Índia / 2023 / 7’ (estreia no Brasil)
Rapacidade / Rapacity / Julia de Simone, Ricardo Pretti / Brasil / 2023 / 44’ (estreia mundial)
Silesilence / idem / Jacques Perconte / França / 2022 / 15’ (estreia internacional)
Solmatalua / idem / Rodrigo Ribeiro-Andrade / Brasil / 2022 / 15’
O tempo que nos separa / The Time That Separates Us / Parastoo Anoushahpour / Jordânia, Palestina, Canadá / 2023 / 35’ (estreia no Brasil)
Tudo que vi era o sol / All I could see was the sun / Leonardo Amaral, Pedro Maia de Brito, Ralph Antunes / Brasil / 20’ (estreia mundial)
Uma mulher escapa / A Woman Escapes / 79' / Sofia Bohdanowicz, Blake Williams e Burak Çevik / Canadá,Turquia / 2022 / 79’ (estreia no Brasil)
O vizinho mais próximo / Nearest neighbor / Rebecca Baron e Douglas Goodwin / EUA / 2023 / 23’ (estreia no Brasil)
MOSTRA CADMO E O DRAGÃO:
A Árvore / idem / Ana Vaz / Espanha, Brasil / 2022 / 20’ (estreia no Brasil)
Cemitério Verde / Green Cemetery / Maurício Chades / Brasil / 2023 / 25’
Luta pela Terra / Fight for the land / Camilla Shinoda e Tiago de Aragão / Brasil / 2022 / 29’
Paisagem em Chamas / Burning Landscape / Silvino Mendonça / Brasil / 2023 / 7’ (estreia mundial)
Vermelho Bruto / Rough Red / Amanda Devulsky / Brasil / 2022 / 325’
FILME DE ENCERRAMENTO: